segunda-feira, 1 de outubro de 2012

NO TEMPO EM QUE OS ANIMAIS FALAVAM


Duas Fábulas Chinesas Sobre Libertação Espiritual


Carlos Cardoso Aveline


 Uma tartaruga marinha e uma rã


O cavalo-marinho tem uma perna só. Este peixe do gênero Hippocampus nada erguido, e sua longa cauda funciona como uma perna, com a qual se enrosca em algas para fixar-se, quando não a enterra na areia do fundo do mar para permanecer “ancorado”.  Há várias espécies de cavalo-marinho em partes rochosas do litoral brasileiro, especialmente onde as águas são tranqüilas.

Pois, há uma história chinesa envolvendo o cavalo-marinho, alguns outros animais e o vento.  Foi contada originalmente por Chuang-Tzu, o  pensador  taoísta que viveu três séculos antes da chamada era cristã.  Com o tempo, a história  ganhou acréscimos. 

Milhares de anos atrás, o cavalo-marinho, insatisfeito com sua perna única, sentia inveja da centopéia.  E ele tinha seus motivos. Durante uma conversa com alguns amigos, o cavalo-marinho dasabafou, dirigindo-se à centopéia:

― “Com minha perna única,  tenho óbvias  dificuldades de transporte e deslocamento.  Mas tu estás no outro extremo. Como consegues articular todas as pernas que tens?”

― “Não preciso articular as pernas”, respondeu a centopéia,“ e a explicação para isso é simples. Observa as gotas da chuva. Elas caem aos milhares no chão, sem fazer esforço. Do mesmo modo, o mecanismo pelo qual eu caminho atua  naturalmente. Não tenho que fazer esforço,  e  nem sequer preciso ‘saber’ conscientemente como caminhar.”

Apesar disso,  a atitude da centopéia também revelava mais tristeza do que orgulho. Depois de um momento em silêncio,  ela olhou para a cobra e compartilhou sua própria frustação: 

― “Por que, se tenho tantas pernas, não consigo andar  tão rápido como tu, que não possuis perna alguma?  Não entendo esse paradoxo.”  A cobra respondeu:

― “Cada um tem o seu Dharma, seu Tao especial, sua  vocação, e também os meios para cumprir sua  tarefa na vida.  Que necessidade eu tenho de pernas? Nenhuma. Minhas limitações são outras. Há uma coisa, porém,  que não entendo.”   Voltando-se para o Vento que soprava, a cobra perguntou: 

― “Eu me arrasto movendo minha espinha.  Tu, porém, que pareces não ter forma alguma, vens soprando com grande imponência desde o mar do Norte,  até agitar e varrer poderosamente o mar do Sul. Como consegues essa  façanha?”

 “É verdade que sopro como dizes”, respondeu o Vento Norte  sem  mostras de orgulho. “Também posso construir grandes sistemas de dunas. Sei  esculpir rochas durante milhares de anos, e assobiar entre elas. Mas todos podem  atravessar-me com uma simples mão ou um pé em qualquer ponto da minha marcha. Em um ponto específico qualquer do espaço e do tempo,  sou mais fraco que os objetos sólidos.  A longo prazo,  exerço um poder que eles não têm.  A partir de muitas derrotas menores, sei construir a grande vitória.”

A narrativa dessa reunião mostra a inutilidade do sentimento de inveja, que é sempre um desperdício de energia. Mas ela também faz lembrar que  não se pode obter uma vitória, naquilo que realmente importa para nós, sem fazer sacrifícios e sem fracassar em coisas menos importantes. Nestas questões, é a  renúncia deliberada que geralmente permite evitar a derrota.   

Conversa Entre a Rã e a Tartaruga 

Uma outra história ― igualmente atribuída a Chuang-Tzu e da qual há várias versões mais ou menos livres ―  narra o diálogo de uma rã com uma tartaruga marinha.

― “Que grande vida levo eu!” disse a rã, que morava num poço relativamente raso. “Salto ao parapeito do poço e descanso no buraco de uns tijolos quebrados. Ao nadar, mantenho a boca quase à linha da água. Quando vou visitar a lagoa rasa perto daqui, percebo que sou superior a todos os caracóis,  sapos pequenos,  caranguejos e insetos que vejo à minha volta.”

Convidada insistentemente para visitar a rã, a tartaruga  concordou  um dia em ir até  a lagoa. Não gostou muito do que viu, mas evitou fazer críticas. Semanas depois, conversando  com a rã na beira da praia, a tartaruga  falou do mar:

 “Mil quilômetros não servem para medir sua largura, e mil metros não medem sua profundidade. Tempos atrás, houve nove anos seguidos de inundações, e isto  não aumentou o seu volume. Depois houve sete anos de seca, e isso não fez com que suas praias baixassem. O mar não é afetado pelo aumento ou diminuição das águas. Nem pela passagem do tempo.”

Qual é a moral  da história, neste caso?

A rã e a tartaruga são dois níveis de consciência da alma humana.  Por um lado, aquele que busca a Verdade ainda está, em parte,  preso à poça d’água de pequenas coisas da vida diária ― com suas esperanças, seus medos, apegos, satisfações e insatisfações de curto prazo. De outro lado, ele já conhece aquele oceano de sabedoria interior em que pode nadar e flutuar sem esforço, e onde moram a paz e a liberdade imensas da tartaruga.

Este animal, aliás,  vive  mais de um século e simboliza a sabedoria universal porque não se deixa levar pelas coisas de curto prazo.
    
Até certo ponto, é verdade que os seres humanos tentam ser felizes apegando-se como rãs às suas pequenas poças d’água.  Mas eles também são capazes de desenvolver em seus mundos pessoais o ponto de vista da alma imortal, e passar  a viver em escalas cada vez mais amplas de espaço e tempo. O forte contraste entre a poça d’água e o oceano  serve para testar o discernimento de quem deseja aprender sobre a vida. 


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Veja o livro “A Vida Secreta da Natureza”, de  Carlos Cardoso Aveline, Terceira Edição, Ed.Bodigaya, 2007, 158 pp. Visite www.bodigaya.com.br 

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Para ter acesso a um estudo diário de teosofia original, escreva a lutbr@terra.com.br e pergunte como é possível acompanhar o trabalho do e-grupo SerAtento

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