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Todo
Progresso é Resultado de Cooperação
Carlos Cardoso Aveline
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O
texto a seguir foi publicado
inicialmente na edição de maio de
2011
do boletim eletrónico “O
Teosofista”.
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“De
todos os bens que a sabedoria
proporciona para produzir a felicidade por
toda
a vida, o maior, sem comparação, é a
amizade.”
(Epicuro)
A amizade é uma forma de afeto em que há um
sereno respeito pela liberdade e pela autonomia de cada um.
Livre de apegos cegos, o sentimento de amizade não é
necessariamente dirigido apenas a este ou aquele indivíduo em especial. Os
sábios são amigos de todos os seres: a amizade pode ser incondicional. Por outro
lado, cada amizade tem suas características específicas e possui uma capacidade
própria de resistir a adversidades.
“Amigos na dificuldade, amigos de verdade”, diz o ditado popular em
língua inglesa.
A
verdadeira amizade surge do eu superior, ou alma imortal. Ela corresponde ao
primeiro objetivo do movimento teosófico moderno, que busca ser um núcleo de
fraternidade sem fronteiras. A mesma ideia está presente no budismo, no taoísmo,
no hinduísmo e outras filosofias orientais e ocidentais. A prática da amizade universal é pitagórica: Thomas Stanley, um
filósofo do século 17, escreveu em sua obra sobre o ensinamento de
Pitágoras:
“Há
uma amizade e uma afinidade de todos por todos: entre deuses e homens, através
da compaixão e do sentimento religioso; entre as diferentes doutrinas; entre a
alma e o corpo (a parte racional e a parte irracional do ser humano) através da
filosofia e das suas teorias; e entre os diferentes seres humanos...” [1]
A
fraternidade universal é uma verdade básica que pode ser observada por todos. No
mundo animal - assim como no reino humano - a regra geral é dada pela cooperação
e pela amizade. A competição se dá no interior do processo de cooperação. É esta
última que predomina. O escritor anarquista russo Piotr Kropotkin, um partidário
da ação não-violenta, desenvolveu um cuidadoso estudo histórico mostrando de
modo inegável que, ao contrário do que o darwinismo pensa, não foi a competição,
mas sim a ajuda mútua, que possibilitou desde o início da vida a evolução das
espécies.[2]
Tudo
o que rodeia um cidadão - mesa, computador, ônibus, roupas, ruas, prédios - é
resultado da cooperação e da ajuda mútua. A civilização materialista leva seus
cidadãos a esquecerem disso. Muitos pensam que a competição é central, e isto os
torna infelizes. A maneira natural dos seres humanos relacionarem-se é através
da amizade. Por que motivo é tão difícil
seguir essa tendência natural? O ser humano cresce na luta com os paradoxos. Um
poderoso jogo de pressões e conveniências ensina a ele desde cedo que é preciso
desenvolver a competição. Assim se limita a amizade como impulso natural e se
dificulta a plena ajuda mútua. Uma condição básica para que possamos voltar a
viver plenamente a solidariedade consciente é ser autênticos, primeiro, com nós
mesmos. Aceitar os outros como eles são, estimulando o melhor neles, e ser grato
à vida inclusive pelas suas lições dolorosas, são hábitos realistas que nos
tornam mais sábios e mais capazes de compreender a vida e de ser amigos.
Amar
é melhor do que ser amado. Ser amigo é mais importante que ter amigos. Mas a única base sólida para
a afinidade entre os seres humanos é um respeito sagrado de cada um por si
mesmo. Este sentimento surge da percepção de que pertencemos à alma imortal
existente em nosso próprio coração. Não temos uma alma, mas a alma nos tem. Nosso “eu superior” é nossa origem e nosso
destino, e também nossa fonte de inspiração. O respeito por si mesmo está, pois,
na origem do respeito pelos outros. Voltaire, o filósofo francês do século 18,
escreveu:
“Amizade é um contrato tácito entre duas pessoas
sensíveis e virtuosas. Sensíveis, porque um monge, um solitário, pode não ser
ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas, porque os maus não buscam mais
que cúmplices. Os sensuais buscam companheiros de devassidão. Os interesseiros
reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos
mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos.”[3]
Assim, a verdadeira amizade é inseparável da ética e do
altruísmo. O significado original da palavra “filosofia” é “amor pela
sabedoria”, e Voltaire afirma:
“O
filósofo é um amigo da sabedoria, ou seja, da verdade. Esse duplo caráter esteve
presente em todos os filósofos. Não houve nenhum na Antigüidade que não desse
exemplo de virtude aos homens e lições de verdades morais.” [4]
Sem
dúvida, é comum encontrar gente que ignora qualquer diferença entre ser amigo e
ser cúmplice. Deste ponto de vista, dois amigos devem apoiar um ao outro “em
qualquer situação”, inclusive em ações contrárias à verdade e ao equilíbrio.
Os
mafiosos criam os seus próprios “códigos de ética” e “compromissos de lealdade”.
O uso da amizade em jogos de conveniências gera confusão e sofrimento. O
pensador romano Cícero (106 a.C.- 43 a.C.) esclareceu esta questão há pouco mais
de dois mil anos. Em seu tratado sobre a amizade, ele
escreveu:
“Uma
associação de pessoas sem fé nem lei não poderia se abrigar sob a desculpa da
amizade (...). Essa é, portanto, a primeira lei que se deve instaurar na
amizade: não pedir a nossos amigos senão coisas honestas, não prestar a nossos
amigos senão serviços honestos, sem esperar que eles nos sejam pedidos;
permanecer sempre confiante, banir a hesitação, ousar dar um conselho em total
liberdade. No domínio da amizade, é preciso que predomine a autoridade dos
amigos mais bem avisados, e que esta influência se aplique em acautelar os
outros, não só com franqueza mas com suficiente energia, se a situação o exigir,
para que o conselho seja posto em prática.” [5]
Amizade verdadeira é inseparável de sentimentos nobres, e
Cícero explica:
“A
amizade nos foi dada pela natureza como auxiliar das nossas virtudes, e não como
cúmplice dos nossos vícios, para que a virtude de um, não podendo alcançar
sozinha o supremo bem, o alcance apoiada na virtude do outro”. Para o filósofo
romano, “há uma simpatia quase inevitável entre os bons entre si, que é o
princípio da amizade instaurado pela natureza.”
Em
outro trecho do seu tratado sobre a amizade, Cícero afirma:
“O
amor, de onde provém a palavra amizade, é no seu primeiro fundamento simpatia
recíproca (...). Na amizade nada é fingido, nada é simulado, tudo é verdadeiro e
espontâneo.”[6]
O
nível da franqueza existente entre amigos é um indicador da solidez do vínculo.
Quando dois amigos usam muita cautela
para não se ferirem mutuamente, a amizade pode ser superficial. Uma amizade mais
profunda produz certa ausência de cuidado com as palavras, e torna possível um
grau maior de espontaneidade. Às vezes isso só surge com o tempo: a confiança
mútua raramente se constrói em um dia.
Toda
amizade enfrenta testes, e, para Aristóteles, “somente a amizade entre pessoas
boas é imune à calúnia”. Ele explica:
“É
entre pessoas boas que encontramos a confiança, o sentimento de que uma nunca
fará mal à outra, e tudo mais que se espera em uma amizade sincera. Nas outras
espécies de amizade, todavia, nada impede o aparecimento de suspeitas”. [7]
Platão fazia deste sentimento uma virtude social e
política, elemento auxiliar importante para a construção da sociedade ideal. Mas
Epicuro, que viveu em um período de decadência política, via a amizade como um
fim em si e dava a ela importância suprema.
Considerado um sábio por Helena Blavatsky, Epicuro tinha
uma filosofia próxima à dos estóicos. Ele fundou uma comunidade em Atenas para
viver com os amigos, o Jardim, e sua vida foi um exemplo de ética e
autodisciplina. Para Epicuro, “de todos os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida, o maior, sem comparação, é a
amizade”. E acrescentou: “A mesma
convicção que nos inspira a confiança de que nada existe de terrível que dure
para sempre, nem mesmo por muito tempo, também nos habilita a ver que dentro dos
limites da vida nada aumenta tanto a nossa segurança como a amizade.” [8]
Na
Bíblia, o Eclesiástico parece concordar com Epicuro. Primeiro o texto aconselha
cautela (em 6: 7): “Se queres um amigo,
adquire-o pela prova e não te apresses a confiar nele”. Pouco depois, o Eclesiástico acrescenta:
“Afasta-te de teus inimigos e acautela-te com teus
amigos. Um amigo fiel é um poderoso refúgio; quem o descobriu, descobriu um
tesouro. Um amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Um amigo fiel é
um bálsamo vital, e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme ao
Senhor faz amigos verdadeiros, pois tal como ele é, assim é seu amigo
(6:13-17).”
Amigos cometem erros. Mesmo numa amizade sincera pode
ocorrer decepção. Por outro lado, devemos respeitar nossos adversários. O texto clássico de teosofia “Luz no
Caminho”, de Mabel Collins, afirma o seguinte, sem meios termos:
“A
inteligência é imparcial; nenhum homem é teu inimigo, nenhum homem é teu amigo.
Todos são igualmente teus instrutores.” [9]
Carlos Castaneda ensina que o adversário é sempre um
instrumento precioso do nosso crescimento, porque identifica as falhas que
devemos corrigir e mostra como funcionam em nós o medo e o ódio, para que,
então, estes dois sentimentos sejam
extirpados pela luz da compreensão.
Outros autores, como Plutarco, destacam que os amigos
freqüentemente acobertam nossas falhas, nos acostumam mal e nos levam a ficar
preguiçosos, enquanto que os adversários nos mantêm alertas, nos obrigam a
crescer e a superar a rotina que, de outro modo, nos engoliria. Tais testemunhos
reforçam a idéia de que a verdadeira amizade é um processo livre de apego, em
que o afeto não é colocado acima da sabedoria nem dos valores éticos, mas sim a
serviço deles. A verdadeira amizade é
nobre, e Khalil Gibran escreveu:
“Não
deve haver outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito.
Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação do seu próprio
mistério não é amor, mas uma rede armada, e somente coisas inúteis são apanhadas
nela.”[10]
A
frase de Gibran pode ser dura, mas ela é realista. Quanto mais cedo renunciarmos
à auto-ilusão, melhor para nós. A verdadeira amizade requer desapego. Os “Versos de Ouro” de Pitágoras expressam a
sabedoria teosófica, e neles podemos ler o seguinte sobre a combinação de
firmeza com flexibilidade:
“Escolhe como amigo o mais sábio e virtuoso. Aproveita seus discursos inspiradores,
e aprende com os seus atos úteis e virtuosos. Mas não afasta teu amigo por um
pequeno erro, porque a força da vida é limitada pela necessidade.” [11]
NOTAS:
[1] “Pythagoras, His
Life and Teachings”, de Thomas Stanley, Philosophical Research Society,
Califórnia, EUA, 1970.
[2] “El Apoyo
Mútuo, Un Factor de la Evolución”, de Piotr Kropotkin, Ed. Proyección, Buenos Aires, 1970, 328 pp.
Há uma edição em inglês: “Mutual Aid, a
factor of evolution”, Peter Kropotkin, Dover Publications Inc., Mineola, New
York, 2006, 312 pp.
[3] “Dicionário
Filosófico”, Voltaire, Ed. Martin Claret,
p. 23.
[4] “Dicionário
Filosófico”, p. 232.
[5] “A
Amizade”, texto de Cícero incluído no volume “Saber Envelhecer”, Ed. L&PM,
Porto Alegre, 151 pp. Ver
respectivamente as pp. 104 e 105.
[6] “A Amizade”, texto de Cícero incluído no volume “Saber Envelhecer”,
Ed. L&PM, Porto Alegre, 151 pp. Ver respectivamente as pp. 91 e 131.
[7] “Ética a
Nicômacos”, de Aristóteles, Ed. UnB, Brasília, terceira edição, 238 pp., ver
p.157.
[8] “Vidas e
Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, Diógenes Laertios, Editora UnB, Brasília,
1977, 357 pp., ver p. 319.
[9] “Luz no
Caminho”, Mabel Collins, Ed. Pensamento, SP, 85 pp., ver pp.
33-34.
[10] “O
Profeta”, Gibran Khalil Gibran, Ed. ACIGI, RJ, 89 pp., ver p.
56.
[11] A íntegra
de “Os Versos de Ouro de Pitágoras” pode ser facilmente encontrada pela Lista de
Textos por Ordem Alfabética do website
www.FilosofiaEsoterica.com ,
ou na seção de “Filosofia Ocidental, Clássica e Moderna” do mesmo website.
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Texto originalmente publicado em www.FilosofiaEsoterica.com .
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